EU E O MEU LUGAR NO MUNDO – Narrativa, memória e identidade
É impossível viver a vida sem dar um sentido e um significado à experiência de estarmos vivos, de possuirmos corpos, nos relacionarmos e de habitarmos o tempo. Argumentar contra essa premissa fundamental de ser humano é ir pelo caminho obscuro do niilismo, da negação do significado, que acaba por negar a própria vida, abraçando o cinismo absoluto e, em última instância, a impossibilidade de ser. Damos sentido à existência porque é isso o que fazemos enquanto humanos. [1] Em uma perspectiva cristã, fazemos isso pois fomos criados como imagem de um Criador que é em si mesmo a fonte de todo sentido.
Toda a produção de significado abraça uma ecologia de relações entre processos, eventos, pessoas, coisas e tudo o mais. Significado é relacionamento. Sem relacionamento não há sentido em nada. Talvez seja por isso que experimentamos um mal-estar generalizado em nossos tempos, haja vista que assistimos à desconstrução gradativa dos pontos de referência da vida humana, no que muitos têm denominado de pós-modernidade [2]. Com o abalo dos referenciais da modernidade – progresso e razão – nada mais parece ser estável – tudo o que é sólido se desmancha no ar [3]. Os tempos são líquidos, as identidades sexuais fluídas, a verdade relativa e a identidade mero construto social. [4] Estamos perdidos no cosmo, na vida social e em nós mesmos.
Alguns há que já decretaram o fim da história [5] e há alguns que acreditam que algo novo ainda há de aparecer para nos trazer algum tipo de esperança em meio às incertezas da era presente, como no caso dos transhumanistas e de sua esperança na singularidade [6]. Nesse contexto, cabe a pergunta: é realmente possível saber quem nós somos? Existe algum tipo de porto seguro para a identidade humana, em meio a tantas mudanças bruscas e vertiginosas?
Ora, é impossível conceber qualquer senso identitário sem pensar em uma narrativa na qual eu me encaixe. A não ser que aceitemos o solipsismo como nossa filosofia, a identidade humana (que aliás se tornou um problema somente na modernidade) só pode ser concebida dentro de uma história, que diz respeito a uma memória (individual e coletiva) a respeito do princípio de todas as coisas e daquilo que aconteceu antes e de uma esperança e expectativa de um futuro que há de vir. Nessa tensão, entre passado e futuro, encontramos e concebemos o presente como locus da habitação do eu.
Nesse sentido, a concepção clássica da narrativa cristã permanece a mesma: criação, queda e redenção. Qualquer outra narrativa que capture nossa imaginação, vai nos levar a viver outra história e nos formar identitariamente para outro mundo. Por mais que outras narrativas de vida tenham momentos de verdade e insights verdadeiros sobre a ordem criada, elas falham completamente na tarefa de atribuir sentido à existência na criação de Deus. Da utopia marxista ao ideário anarco-capitalista, passando pelo estruturalismo de Foucault e chegando no dualismo jungiano – e de discípulos dele como Jordan Peterson.
Por isso, nunca é demais lembrar quem somos, que fomos criados pelo Deus trino, como imago Dei, co-criadores, postos no jardim para cultivá-lo e expandi-lo para além do Éden. Somos o pó da terra com o sopro divino. Somos humanos de carne e osso, e não anjos. Trabalhamos, nos relacionamos, produzimos cultura, arte, engenharia, sociologia, também descansamos, comemos, nos relacionamos e fazemos sexo. Todas essas coisas são boas, desde que a façamos à sombra da árvore da vida. Somos gloriosos!
Entretanto, em nossa narrativa sabemos que com o pecado e queda, a relação de confiança com o Deus Criador foi quebrada, o que afetou toda a ordem criada. Demos ouvido à serpente, centramo-nos em nós mesmos e morremos. Matamos Abel, destruímos a terra, amaldiçoamos o próximo, desobedecemos aos pais, violamos o descanso, nos afastamos de Deus e dos outros. Abusamos, violentamos, destruímos. Construímos Babel à sombra da árvore do conhecimento do bem e do mal. Agora, somos ruínas gloriosas!
Todavia, mesmo vivendo num mundo caído, encontramos esperança na redenção de todas as coisas, a partir da encarnação do Filho de Deus e de sua obra redentiva que toca toda a ordem criada. Reconciliados com o Criador e agora sendo seus filhos, tornamo-nos parceiros do Seu projeto de redenção, a partir da obra de Cristo. Vivemos entre dois mundos, entre dois reinos, entre o já e o ainda não, entre Babel e a Nova Jerusalém. Temos dupla cidadania, somos bilíngues. Estudamos na cidade dos homens, mas nossas mentes servem o rei da cidade de Deus. Nos relacionamos, criamos, trabalhamos a partir da esperança da recriação do mundo no Filho. Somos ruínas gloriosas e esperançosas!
Nada há de mais contracultural em nossos dias do que sabermos quem somos. E sabermos quem somos passa, necessariamente, por sabermos em que história habitamos e para onde estamos indo. Que o Filho batize nossa imaginação no Espírito Santo para que vivamos hoje à sombra da árvore da vida, cujas folhas – corpo e sangue – dão vida às nações.
Josué Reichow
É casado com a Lili e pai do Benja. É diretor de L’Abri Sul, em Ivoti, onde reside. É teólogo e sociólogo. Gosta de bons cafés e é autor de Reformai a Vossa Mente, pela editora Monergismo.
[1]DOOYEWEERD, Herman. Raízes da Cultura Ocidental: as opções pagã, secular e cristã. Trad. Afonso Teixeira Filho. São Paulo: Cultura Cristã, 2015.
[2]KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997
[3]BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2007.
[4]Conferir palestra de James Paul, Is reality socially constructed?. Disponívem em: <https://www.labriideaslibrary.org/IdeasLibraryDatabase/is-reality-socially-created%3F>.
[5]FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.
[6]HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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