O Folclore e a Bíblia: engajando-se com a cultura a partir de uma visão cristã

O que o Saci e o Curupira têm a ver com a educação e a fé cristã? Aparentemente, nada. Essas figuras do folclore brasileiro estão muito distantes do conhecimento científico e da Bíblia. No entanto, o folclore faz parte da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e invade as escolas brasileiras no Dia do Folclore (22 de agosto), quando alunos exploram personagens, cantigas, parlendas, lendas e tradições. 

A palavra “folclore” vem do inglês folk (povo) e lore (tradição) e se refere ao “conjunto das tradições, lendas, canções e costumes populares de um país ou região”. [1] O folclore brasileiro nasceu do encontro entre matrizes indígenas, africanas e europeias, formando um repertório cultural rico, mas também ambíguo. O Saci é um personagem travesso, que engana e causa confusão, e o Curupira é protetor das matas, mas o faz por meio de truques e enganos. Essas narrativas misturam criatividade, humor e crítica social, mas também trazem elementos espirituais confusos.  

Isso nos leva a uma pergunta prática: Como pais e professores cristãos podem participar dessa celebração sem comprometer sua fé? Devemos rejeitá-la como superstição ou aceitá-la sem pensar para evitar conflitos?   

Um modelo bíblico de engajamento cultural

Para compreender o folclore de forma cristã, é preciso entender o que é cultura e o seu lugar no pensamento bíblico. Para o teólogo Richard Niebuhr, cultura é “o ambiente artificial e secundário que o homem sobrepõe ao natural. Ela abrange a linguagem, hábitos, ideias, crenças, costumes, organização social, artefatos herdados, processos técnicos e valores.”[2] Por surgir a partir do mandato que Deus deu ao primeiro casal de encher a terra, exercer domínio, cultivar o jardim e nomear o mundo (Gn 1:28; 2:15, 19), a cultura é importante. 

Com a entrada do pecado, a boa criação de Deus foi manchada e a vocação humana distorcida. No entanto, os descendentes de Caim trouxeram avanços culturais significativos como a agropecuária, música e metalurgia (Gn 4:19–22). Ou seja, “toda a cultura possui uma ambiguidade intrínseca. Ela é bela, ordenada por Deus, e, nesse sentido, cumpre o propósito divino ao dar vazão à criatividade humana, como imago Dei. Ao mesmo tempo, ela possui a marca da queda e do pecado, e com isso carrega elementos que vão contra os mandamentos de Deus.”[3] E se a cultura é ambígua, o folclore, como manifestação cultural, também é. 

A própria história de Israel mostra como lidar com a ambiguidade do seu ambiente cultural. Israel não vivia isolado, debaixo de uma redoma espiritual, mas fazia parte da cultura do antigo Oriente Próximo. Sim, a Bíblia questiona vários elementos dessa cultura, mas também os usou e ressignificou para explicar uma visão de mundo diferente para o povo de Deus. Por exemplo,  

  • O conceito de aliança já era conhecido em outras culturas, mas em Israel foi ressignificado para expressar o relacionamento com Yahweh.
  • A circuncisão era um rito comum, que ganhou novo sentido como sinal da aliança.
  • O tabernáculo tinha elementos arquitetônicos semelhantes a outros templos, mas foi reinterpretado como lugar da presença do Deus verdadeiro.  

A Bíblia, então, vai além de simplesmente aceitar ou rejeitar a cultura e o folclore, apresentando-nos um modelo mais rico e complexo. 

Estratégias para professores cristãos  

  1. Ensine sobre o folclore sem medo. Nem tudo o que há no folclore brasileiro é bom, ético ou alinhado ao ensino bíblico, mas é injusto privarmos nossos filhos e alunos daquilo que faz parte da nossa história como brasileiros. Existem brinquedos típicos, comidas regionais e brincadeiras infantis que não apresentam problemas morais. Ao mesmo tempo, é ingênuo pensar que nossos alunos ficarão malandros simplesmente por terem sido expostos às aprontações do Saci.  
  2. Promova o discernimento. Professores cristãos não precisam abraçar, nem ensinar as lendas folclóricas como verdades espirituais ou modelos de vida. Pelo contrário, podem apresentá-las como narrativas culturais que expressam os medos, as esperanças, os valores e as visões de mundo da própria cultura de que sua sala de aula faz parte e convidar os alunos a refletirem sobre isso por meio de boas perguntas. Por exemplo,

    • O que essas lendas revelam sobre como a nossa cultura vê a realidade física, social, moral e espiritual?  
    • Quais valores estão presentes nessas narrativas?  
    • Essas histórias estão tentando promover ou coibir certo comportamento? Como esse comportamento é avaliado?  
    • De que modo a fé cristã oferece uma resposta distinta? (se for apropriado no seu contexto escolar) 
  3. Foque nos aspectos positivos do folclore. Ao trabalhar com a ambiguidade do folclore, o professor pode ressaltar o valor artístico, social e histórico do folclore, e dar menos destaque a aspectos controversos ou conflitantes com uma visão cristã. Outra estratégia é fazer pontes sutis e implícitas com a fé cristã. Por exemplo, apesar da fama de enganador, o Curupira é o protetor das árvores e dos animais, o que se alinha com o chamado de Deus para cuidarmos da Sua criação. A ideia aqui não é sugerir que o Curupira seja semelhante ao Deus bíblico, apenas mostrar que há uma sobreposição sobre a importância de cuidar da natureza. Se for apropriado ao seu contexto, é possível tecer comparações e contrastes entre a revelação bíblica e a visão folclórica sobre o meio ambiente. 
  4. Adote uma postura pedagógica respeitosa. É fundamental não desprezar ou ironizar tradições folclóricas, não somente porque a escola é um ambiente laico e plural, mas também por uma questão missional. Em Atos 17, Paulo estava “profundamente indignado” com a idolatria dos atenienses, mas ao conversar com eles, o apóstolo mantém seus sentimentos para si. Em vez de ser duro ou crítico, Paulo adota uma postura indireta e convidativa, reconhecendo a busca espiritual deles, ainda que as respostas estejam equivocadas. Ele inclusive usa elementos dessa cultura idólatra para anunciar o Evangelho.  

A visão cristã sobre o Dia do Folclore não deve ser de rejeição automática nem de aceitação ingênua. O caminho bíblico é de engajamento crítico: reconhecer a criatividade humana como reflexo da imagem de Deus, mas também discernir as distorções do pecado. Para o professor cristão em escola pública, isso significa olhar para o folclore brasileiro como oportunidade pedagógica. É possível valorizar a nossa riqueza cultural e, ao mesmo tempo, formar alunos críticos da própria cultura. Afinal, a esperança cristã é que toda expressão cultural possa ser redimida e reorientada para Cristo — aquele que é a plenitude da verdade, da beleza e da vida.  

Raphael A. Haeuser
Coordenador do Didaquê
TeachBeyond

Raphael é apaixonado por uma fé integral que transforma a vida, o trabalho e a educação. Ele possui mestrado em Teologia pelo Regent College (Canadá) e especialização em Gestão Escolar. Ele atua como Diretor de Serviços Globais de Educação da TeachBeyond e Coordenador da Didaquê, que se concentra em formação de professores e profissionais cristãos.


[1] www.dicio.com.br/folclore/. Acesso em 18/08/2025.

[2] NIEBUHR, H. Richard. Cristo e Cultura. [s.l.]: Paz Terra, 1967. P. 54.

[3] REINKE, André Daniel. Os Outros da Bíblia: história, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino. Rio de Janeiro, Thomas Nelson Brasil, 2019. p. 32.

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