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Eu-igreja Caminhando na Cidade
Eu-igreja estava caminhando na cidade um dia desses. Coisa pouca, trivial, uma ida ao supermercado mais próximo.
Na volta, tomei o caminho que sempre faço, dessa vez pelo lado oposto da rua. Se eu pudesse contar o quanto sou observadora ou o quanto fui exercitada para olhar aquilo que é aparentemente comum, talvez você consiga imaginar o tamanho da minha surpresa ao perceber o Outro Lado — vou chamar assim. Uma simples mudança de hábito me permitiu enxergar os invisíveis dessa cidade: em meio a um bairro de classe média alta percebi, pela primeira vez, um terreno com três casas marginalizadas, de madeira simples, toscamente pintadas, cachorro vira-lata solto e roupas penduradas no varal público, dispostas aos olhos de quem quisesse ver.
Por que até aquele momento eu não quis ver? — comecei a pensar. Dei um nome técnico para minha miopia: condições de invisibilidade.
É técnico mas é real: o ambiente urbano se monta e se vende de tal forma que a mente vai certeira naquilo que deseja ver: grandes construções, uma nova pizzaria, luzes decorativas, anúncios de promoção por todos os lados. Pessoas? Sim, pessoas, mas pessoas que passam, que tiram fotos no meio da cidade turística, sorrisos de vendedores cansados que precisam trabalhar.
As condições de invisibilidade também falam de uma marginalização política e social, de necessidades básicas não atendidas e de um olhar respeitoso e digno que nem sempre é endereçado a todos, como bem lembrou Ralph Ellison. Da mesma forma, invisível é aquele que, sendo visto a partir de sua riqueza e glamour, não é percebido em essência, ser humano como todos, necessitado. Entre riqueza, pobreza, afastamento e profusão, muitas são as condições que nublam nosso olhar, tornando-o desapercebido.
Apesar da verdade do termo, não são as condições as únicas responsáveis pelo olhar desatento.
Eu-igreja, dependendo do que estiver fazendo, também escolho não olhar. Se não vejo, não preciso lidar com a informação-pedido que a visão me traz e posso continuar no mesmo caminho, confortável e sem tantos desafios. Posso não parar ao ver uma pessoa que chora, alguém que diz “tudo bem!” com um olhar desesperançoso ou uma situação que precisa de conserto perto de casa. E, vamos ser sinceros, às vezes escolho não ver porque não quero interferência externa no dia a dia ou porque me importar demais é algo que não consigo carregar.
Essa perspectiva interna des-cobre coisas ruins sobre mim (egoísmo, individualismo, falta de amor) e me faz ver que não é só o que vem de fora que corrompe a mirada: posso também desenvolver a apatia dentro de mim. De livre e espontânea vontade. Com o governo ajudando ou não. Com responsáveis externos ou não. Também sou cúmplice por não ver.
Quando sou Eu, vivo a partir dos desafios que o cotidiano traz, muitos e dinâmicos. Vivo com os limites de compreensão que fazem parte do contexto onde estou, ando por caminhos distintos e ajo a fim de alcançar determinados objetivos. Quando sou Igreja, vivo na comunidade local, participo das heranças de Deus dispostas ao corpo de Cristo e isso me transforma e faz crescer. Quando entendo que sou Eu-igreja caminhando pela cidade, posso fazer como Jesus, que enquanto percorria as cidades (agindo), via as pessoas (observando atentamente). Olhava as multidões e tinha compaixão delas.
A sensibilidade de Cristo é comovente. É pessoal, é atenta, é real. Jesus não estava alheio a nenhuma necessidade humana, tanto é que curava toda sorte de doenças e enfermidades, mas sua compaixão é despertada pela necessidade espiritual: eles estavam aflitos e exaustos como ovelhas sem pastor (Mateus 9.35-38). Ao olhar verdadeiramente a humanidade, nosso Senhor contempla as necessidades mais profundas e responde-as. Não há invisíveis, dispersos ou perdidos demais que Seu olhar não alcance.
Na condição de Eu-igreja, percebo que devo ser mais sensível espiritualmente àquilo e àqueles que estão ao meu redor. Na prática, isso significa que a oração que faço pelos que não conhecem a Cristo será preenchida por rostos e nomes, que é o fato de ser igreja que me fará ofertar, que o tempo que invisto será de qualidade. A visão de Cristo vai se tornando gradativamente mais Cristo em mim, andando pelo bairro onde moro.
A compaixão de Cristo também nos ensina a encaminhar as nossas necessidades e as dos outros ao endereço correto.
Na continuação do texto, Ele se dirige aos Seus discípulos e diz: roguem ao Senhor da seara. Depois de produzir em nós o olhar que comove, Ele nos ensina a orar a quem pode resolver a questão, afinal, a seara é de Deus, façamos nós a nossa parte ou não. Talvez Eu-igreja possa ser a resposta das orações que direciono a Deus, talvez seja eu a ajudar um vizinho e a falar do evangelho para o caixa do supermercado. Talvez seja Eu-igreja a clamar por uma situação que não irei resolver, mas que não ficou alheia ao meu olhar espiritual; está diante do Senhor. Ao rogar ao Senhor da seara, nenhuma questão é deixada de lado; pelo contrário, está onde deveria estar. Jesus sabe que esse movimento tira da igreja a autossuficiência e injeta amor genuíno pelo mundo em que vivemos.
Nosso Mestre diz que devemos rogar por mais trabalhadores, porque a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Provavelmente você tenha visitado esse trecho muitas vezes, da mesma forma que eu andei pela rua ao lado todas as semanas. Mas o convite de olhar pelo Outro Lado permanece pedindo uma mudança de perspectiva, de inclinação do coração: sou Eu-igreja que devo fazer missões, ser luz.
A nossa igreja local estará engajada em missões quando essa compreensão for forte o suficiente para nos incomodar a respeito das escolhas ordinárias que tomamos. Esse é o cerne da radicalidade que vê.
E percorria Jesus todas as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades. Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor. E, então, se dirigiu a seus discípulos: A seara, na verdade, é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara. (Mateus 9.35-38)
Texto originalmente publicado no blog do Seminário Teológico de Gramado
Texto: Joyce Melo
Revisão: Luiza Zagonel
Foto: Anna Shvets (@sh.vetss)