Inclusão e fé: refletindo sobre o acolhimento de pessoas com deficiencia na comunidade cristã

Muito se fala em nossos dias sobre práticas mais inclusivas frente à pessoa com deficiência.[1] Fala se em adaptar o espaço para diminuir dificuldades de locomoção, orientar e capacitar pessoas no espaço da igreja para lidar com crianças neurodivergentes, usar Libras visando comunicar o culto àqueles que necessitam desse tipo de comunicação, entre outros. Creio que tudo isso é extremamente válido, necessário e urgente, porém penso que precisamos dar um passo ainda mais atrás e trabalhar nossa mentalidade com relação às deficiências.

Amos Yong, importante teólogo pentecostal, no seu livro La Biblia, las Discapacidades y la Iglesia (A Bíblia, as deficiências e a igreja) defende que precisamos renovar nossa teologia, sobretudo nossa forma de ler e interpretar a Bíblia, para que a mesma se torne mais redentiva para a pessoa com deficiência. O próprio Yong tem um irmão com Síndrome de Down, o qual é membro ativo na sua igreja, e foi a partir dessa vivência que ele refletiu sobre como muitas vezes nossa leitura e interpretação da Bíblia mais perpetua preconceitos do que promovem a redenção.

Nas palavras do próprio autor: “Como podemos identificar e evitar leituras que excluam as pessoas com deficiência e, assim, fragmentem o povo de Deus, e como podemos, em vez disso, articular uma compreensão mais inclusiva das pessoas com deficiência dos textos da Bíblia? É possível formar comunidades de fé mais acolhedoras e hospitaleiras para as pessoas com deficiência? Se sim, como a Bíblia pode nutrir esta visão? Como pode o povo de Deus ser enriquecido pelas vidas e dons das pessoas com deficiência, e o que é que a Bíblia tem a dizer sobre isso?”[2]

Perceba que Yong fala sobre a igreja ser enriquecida com “a vida e dons das pessoas com deficiências”, isso porque, na perspectiva do autor, a pessoa não é definida pela deficiência e sim pela dignidade conferida a ela por causa da Imago Dei que ela carrega. Elas são, portanto, mais uma parte da “multiforme sabedoria de Deus” (Ef 3:10), uma parte do Corpo que possui muitos e variados membros (1Co 12:27). Mais uma vez citando Yong: “Como sabemos, Deus não comete erros, e as pessoas com deficiência devem ser apreciadas como únicas, e até diferentes.”[3]

Trazer essa perspectiva é renovar nosso entendimento, é ir além da informação. Nas palavras do pastor Glauco Ferreira, pai atípico, é “nos conscientizarmos”, o que é mais do que nos informarmos. Segundo ele, “o que difere a informação da conscientização é uma linha muito tênue: o sentimento. Ou seja, a conscientização pode ser entendida como informação acrescida de um sentimento.”[4] Note-se o uso do termo “sentimento”, a conscientização mexe com nossos afetos e não somente com nosso intelecto. Termos pessoas com deficiências em nossas comunidades de fé nos traz o benefício da visão de mundo na perspectiva do outro, que no caso deles é uma perspectiva totalmente diferente da nossa!

Trabalhar para construir uma Igreja que seja de fato inclusiva para as pessoas com deficiência passa por uma renovação de nossa teologia. Isso afetará nossa mentalidade e visão de mundo, o que vai nos levar a perceber que a pessoa com deficiência é, de fato, uma pessoa, e que aos olhos de Cristo somos todos iguais e carentes de misericórdia e graça (Rm 3:23-24).

Yong exemplifica isso muito bem ao trabalhar o episódio do paralítico levado até Jesus por seus amigos por cima de um telhado (Lc 5:17-26). A primeira coisa que o Senhor faz é declarar sobre ele o perdão de seus pecados e não realizar a cura que, aos olhos dos demais, era sua maior necessidade. Jesus olha para aquele homem para além de sua deficiência, Ele enxerga um alvo de seu amor, alguém que recebe a oportunidade de fazer parte do seu povo, de sua Igreja. “Como Kerry Wyn acertadamente resume: ‘o perdão foi para o bem da pessoa fiel com deficiência; a cura foi um sinal para os líderes religiosos incrédulos’.”[5]

Somos chamados a ter o mesmo olhar acolhedor e hospitaleiro aos diferentes que abraçam a fé, independente de suas deficiências. Somos chamados a declarar a dignidade da pessoa humana através dos olhos de Jesus, que sendo Deus se fez homem e assumiu um corpo humano, que mesmo depois de glorificado carrega marcas que para alguns são imperfeições, as mãos furadas e seu lado rasgado. Inclusive, para citar mais uma vez Yong, é com esse corpo “imperfeito” [6] que Cristo oferece a Deus Pai um sacrifício perfeito. Isso revela que a acolhida de Deus está além do visível e exterior, pois habita na obediência sincera e no desejo de agradar ao Senhor.

Um último e importante ponto a ser considerado é a questão não só da pessoa com deficiência, mas das próprias famílias que têm em seu seio um membro que necessita de cuidados específicos. Como uma mudança na nossa visão teológica a respeito das deficiências afeta também de forma propositiva as famílias das pessoas com necessidades especiais que deverão ser acolhidas em nossas comunidades?

Sei que é um tema amplo e merecedor de uma reflexão mais extensa, mas precisamos urgentemente pensar além da lógica do “assistencialismo”. Muitas vezes limitamos nosso pensamento às necessidades da família apenas do ponto de vista da deficiência, e não consideramos os indivíduos singulares que compõem tal família. Por conta de meu trabalho, já ouvi de mães que têm filhos dentro do espectro do autismo e que, por conta de alguma comorbidade, são crianças não verbais, que não se comunicam oralmente. Essas mães já relataram não possuir rede de apoio e que têm uma agenda que demanda bastante delas, divididas entre idas à escola, terapias e consultas médicas. Um fato bastante chocante é o relato de que, pela falta de convívio com outras pessoas, essas mães passam dias sem conversar com ninguém!

Sei que isso pode soar como um absurdo (de fato é isso mesmo), mas a igreja cristã desde sua fundação tem um chamado à comunhão. Somos informados pelo amado médico Lucas em Atos de que: “perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. Todos os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum. Vendiam as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que alguém tinha necessidade. Diariamente perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas refeições com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso, o Senhor lhes acrescentava, dia a dia, os que iam sendo salvos.” (At 2:42, 44–46)

Notemos bem o padrão da igreja primitiva: perseverança na doutrina e na comunhão, sustento das necessidades materiais e afetivo-emocionais resolvidas na comunhão da vida comum, e enquanto isso, nessa comunidade, vibrante e amiga, se achegavam àqueles atraídos pela mensagem e pelo testemunho dos irmãos!

Termino com um chamado que, com o auxílio do Senhor, renovemos nossa teologia e, a partir disso, renovemos também nossa práxis. Que possamos olhar para além das deficiências e enxergar um membro do Corpo de Cristo com seus próprios dons singulares. Que sejamos uma resposta positiva à questão colocada por Daniel Bowman Jr, um cristão que é autista: “Precisamos saber, sem dúvida alguma, que somos aceitos e afirmados pelo corpo, tanto em nossas habilidades quanto em nossas limitações.”[7]

Wesley Carvalho

Graduado em Psicopedagogia, com especialização em Educação Especial, Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo, e Psicopedagogia baseada em ABA. Com mais de 10 anos de experiência na área clínica e institucional, ele atende crianças e adolescentes autistas e atua como orientador em inclusão e educação especial. Atualmente, Wesley está em formação no Programa de Enriquecimento Instrumental do Feuerstein Institute. Ele é casado com Raiane e pai de Noah, Zack e Lucy.


[1] “pessoa com deficiência” — termo utilizado segundo recomendação de Romeu Kazumi Sassaki, publicado no site oficial da Câmara dos Deputados. Terminologia sobre Deficiência na Era da Inclusão em Portal da Câmara dos  Deputados (camara.leg.br), acessado em 13/09/2024 às 21:00

[2] YONG, Amos. La Biblia, las discapacidades y la iglesia: Una Nueva Vision Para la Iglesia.  Salem, Oregon, Publicaciones Kerigma, 2017, p. 31 (tradução e grifo nosso).

[3] Ibid., p. 29 (tradução nossa).

[4] FERREIRA, Glauco; FREITAS, Angelica. Autismo na Igreja: Edificando uma igreja para todos. 2021, p. 33.

[5] Yong, op. cit., p. 87.

[6] Ibid., p. 50, onde o autor usa o termo “corpo deficiente”.

[7] BOWMAN JR., Daniel. No Espectro: autismo, fé e o dom da neurodiversidade. São Paulo: Editora Quitanda, 2024, p. 131.

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