E Se a Fé Cristã Tivesse Algo a Ver com a Pedagogia — uma resenha do livro “Pedagogia Cristã”
O que significa ser professor cristão? De que forma a fé cristã se faz presente na educação? Na seleção do conteúdo? No caráter do professor? Em um método bíblico de ensino? Essas são algumas perguntas feitas por professores cristãos de escolas confessionais e que David I. Smith procura responder em Pedagogia Cristã: como praticar a fé em sala de aula. Frequentemente supõe-se que ensinar é como andar de bicicleta, no sentido que os pedais funcionam independentemente da fé do ciclista. No entanto, o autor insiste que “existe algo como ensinar ‘de forma cristã’”.[1]
A argumentação de Smith se dá a partir da sua vasta experiência de sala de aula como professor de idiomas do ensino médio e professor universitário na área da educação, bem como de mais de duas décadas de pesquisas acadêmicas sobre o tema. Quem acompanha seu trabalho, irá perceber ingredientes de publicações anteriores, mas que aqui ganham nova vitalidade e dinamismo.[2] A palavra “como” no subtítulo do livro pode sugerir que estamos diante de um manual, mas a proposta do autor é convidar à reflexão e oferecer “exemplos, não prescrições” de como a fé pode afetar o processo de ensino e aprendizagem.[3] Isso se reflete no seu estilo de escrever, que toma o leitor pela mão e o conduz numa peregrinação contemplativa em vez de listar princípios e aplicações.
O primeiro capítulo problematiza a questão, ao identificar duas grandes lacunas quando se fala sobre a integração de fé e aprendizagem. A primeira é que, embora professores cristãos geralmente tenham ideais elevados, a sua prática pode ter efeitos contrários, a despeito das suas boas intenções. A segunda é que a literatura acadêmica protestante tende a se limitar a discutir questões subjacentes ao ensino, tais como o propósito da educação, a cosmovisão dos conteúdos e o caráter cristão do educador, o que é bom e desejável, mas negligencia o modo como ensinamos, pois geralmente vê as técnicas pedagógicas como aspectos meramente mecânicos ou neutros.
A palavra “como” no subtítulo do livro pode sugerir que estamos diante de um manual, mas a proposta do autor é convidar à reflexão e oferecer “exemplos, não prescrições” de como a fé pode afetar o processo de ensino e aprendizagem.
O livro então se desdobra em duas partes principais. A primeira abrange os capítulos 2 a 5 e busca demonstrar que a fé deve moldar as práticas pedagógicas do professor cristão e estabelecer o alicerce teológico de como isso pode ser feito. Em vez de começar com um argumento lógico, Smith oferece ao leitor um vislumbre de como a fé pode estar em ação na pedagogia. No capítulo 2, ele narra os nove minutos iniciais de uma aula de alemão onde não há qualquer tipo de conteúdo cristão explícito. Logo, é um bloco de ensino ideal para mostrar como a fé pode afetar o processo pedagógico de maneiras não tão óbvias. A sequência pedagógica descrita tem vários objetivos simultâneos, como ensinar alemão, conhecer os alunos, dar o tom do semestre e incutir valores. Portanto, não há necessidade de abrir mão dos objetivos acadêmicos propostos pelo currículo a fim de inserir um ingrediente explicitamente cristão.
Os capítulos 4 e 5 aprofundam essa temática, descrevendo o processo do próprio autor de superar a sua lacuna entre ser “cristão” e “educador”. Smith concluiu que não existe um único jeito de ligar nossas crenças teológicas a nossas práticas pedagógicas, e muito menos que seja possível fazer uma ligação direta entre fé e educação.[4] O que o professor cristão deve almejar é que suas práticas de ensino e aprendizagem sejam “significativamente ‘motivadas’ pela fé cristã”.[5] Nosso modo de ensinar e de gerenciar os recursos pedagógicos traz consigo uma visão tanto de como imaginamos que o mundo e a vida são, quanto de como consideramos que o mundo e a vida deveriam ser. Valores sempre são transmitidos no processo educacional, ainda que inconscientemente, e, por isso, é necessário fazer escolhas pedagógicas que reflitam a fé cristã.
A partir dessa fundamentação, o segundo bloco (capítulos 6 a 9) parte para a prática. Smith reconhece que professores são pessoas ocupadas e não necessitam se tornar teólogos antes de poderem ensinar de forma cristã. Eles precisam de uma estrutura orientadora que não os engesse, mas que possa ser moldada conforme a sua individualidade e o seu contexto. Assim, o capítulo 6 traz um panorama do modelo What if learning (Aprendizado “e se…”), desenvolvido por uma equipe internacional de educadores cristãos. O nome do modelo deriva da pergunta norteadora: “e se elas [as práticas pedagógicas] pudessem parecer diferentes à luz da fé?”[6] e constitui-se de três momentos interligados, que são explorados em detalhe nos três capítulos seguintes.
Valores sempre são transmitidos no processo educacional, ainda que inconscientemente, e, por isso, é necessário fazer escolhas pedagógicas que reflitam a fé cristã.
O primeiro momento é “ver de maneira nova”. Smith segue o conceito de imaginário social do filósofo canadense Charles Taylor. Ao contrário do conceito de cosmovisão, que articula respostas propositivas para as grandes perguntas, o imaginário social é “um senso não articulado de como as coisas devem funcionar”.[7] A forma como o mundo é imaginado cria um senso de identidade nos membros de dada comunidade e lhes dá um papel a desempenhar. Dois professores da mesma disciplina podem imaginar seu papel de formas bem diferentes (estou preparando cidadãos para o mercado de trabalho ou investindo em portadores da imagem de Deus para que cumpram os propósitos que Deus tem para eles?). Para Smith, o conceito imaginário social é mais relevante para o desenvolvimento de uma pedagogia cristã do que o de cosmovisão, pois (1) ele nos obriga a refletir sobre o que estamos transmitido nas entrelinhas das nossas práticas, (2) é menos prescritivo e (3) quebra de vez a noção do professor como mero “transmissor de conhecimento” e de que o aspecto cristão da aprendizagem está apenas no conteúdo.
O segundo momento — “escolher o engajamento” — é sobre determinar como os alunos idealmente vão se envolver no processo de aprendizagem. Smith ilustra esse momento descrevendo como ele usou o clássico cristão Vida em Comunhão, de Dietrich Bonhoeffer, para ensinar alemão no Ensino Superior. Esse exemplo é usado porque a referida obra, de certa forma, exige algum tipo de envolvimento nas práticas espirituais que ela mesma busca ensinar. Já o terceiro momento — “remodelar a prática” — propõe repensar como os vários aspectos diferentes do processo de aprendizagem podem ser organizados, dando atenção especial ao gerenciamento do espaço e do tempo.
Os últimos dois capítulos têm função de conclusão, revisitando algumas ideias já trabalhadas e fazendo um apelo. Smith quer que as lacunas identificadas no início do livro sejam preenchidas. Ele insiste que “não é suficiente ter perspectivas cristãs sem práticas concretas e engajamento intencional que estejam em consonância com elas”[8] e que não há como patentear métodos cristãos, por isso o professor cristão precisa ir além da devoção pessoal e reconsiderar a sua própria pedagogia. Ele também denuncia diretamente as deficiências da pesquisa acadêmica protestante que se concentra em “o que” e “por que” ensinar, mas quase não trata do “como” fazê-lo de uma forma cristã. Smith até elenca algumas possíveis razões para esse descaso, mas o que ele realmente quer é fomentar uma discussão mais ampla e profunda sobre o ensino e a aprendizagem em uma perspectiva cristã, tanto em um nível pessoal quanto institucional.
Pedagogia cristã atinge seu objetivo naturalmente. Em nível pessoal, é praticamente impossível o educador ler este livro sem refletir sobre a sua própria prática pedagógica. Em nível institucional, o próprio formato do livro, em capítulos acessíveis, seguidos de perguntas para reflexão e debate, faz dele uma excelente ferramenta, seja para leitura em grupo, para dar início a conversas significativas sobre o tema na sua escola, seja como livro-texto em programas de formação de educadores cristãos.
Escrito em uma combinação ímpar de rigor acadêmico, possibilidades de aplicação prática e leitura agradável, o livro faz uma contribuição significativa para o debate sobre a integração de fé e aprendizado. Apesar de não ter os problemas da educação cristã no Brasil em mente, o trabalho de Smith pode nos ajudar a não repetir os erros do movimento de educação cristã escolar norte-americano e a desenvolver uma visão mais integral e saudável do processo de aprendizagem. Além disso, a tradução da obra também nos apresenta a uma das maiores autoridades em educação cristã no mundo.[9]
Pedagogia cristã também traz um elemento libertador. Smith desmascara a necessidade de se ter um ensino distintivamente cristão, se isso significa ter um versículo bíblico específico para justificar esta ou aquela atividade. Uma atividade educativa por si só pouco diz sobre a abordagem que motivou o seu uso.[10] É necessário mais tempo e consistência para que nossos procedimentos transmitam uma narrativa verdadeiramente cristã. Ser um professor verdadeiramente cristão não é fácil, pois exige o desenvolvimento de uma imaginação cristã robusta e discernimento para atuar com criatividade.
Pedagogia cristã também traz um elemento libertador. Smith desmascara a necessidade de se ter um ensino distintivamente cristão, se isso significa ter um versículo bíblico específico para justificar esta ou aquela atividade. Uma atividade educativa por si só pouco diz sobre a abordagem que motivou o seu uso.
Embora o público-alvo primário sejam professores cristãos em escolas cristãs, a proposta de Smith também tem relevância para educadores cristãos nas escolas públicas. Nesse contexto, além de o proselitismo ser proibido por lei, vivemos numa atmosfera cada vez mais secular, por isso uma abordagem cristã explícita está fadada ao fracasso. Como o modelo What if learning não demanda, por exemplo, que as exigências da BNCC sejam ignoradas para que a fé cristã participe do processo de aprendizagem, ele tem mais chances de passar despercebido pelo radar secular e desempenhar um papel subversivo na cultura, pois vai moldar positivamente a imaginação dos alunos de formas mais sutis.
O livro é tão bem escrito e embasado que é difícil encontrar algo para criticar. Mesmo assim, as virtudes do capítulo 8, que explora o segundo momento do modelo What if learning, talvez sejam o seu maior defeito. Ao usar a obra de Bonhoeffer para exemplificar o que significa “escolher o engajamento”, Smith inegavelmente ganha riqueza teológica, mas ao mesmo tempo distancia o modelo do cotidiano do professor. É difícil imaginar como os insights de um curso de idiomas com alta carga teológica se traduzem na busca pelo envolvimento de alunos do Ensino Fundamental e na orientação sobre qual é o papel do professor nesse cenário. Como fica aquela aula cujo conteúdo aparentemente não sugere nenhum tipo de engajamento cristão? Para quem domina o inglês, essa brecha pode ser preenchida pelos recursos disponíveis no site What if learning, que traz uma variedade de exemplos acessíveis de como usar o modelo nas diferentes disciplinas do Ensino Fundamental e Médio.
Pedagogia cristã é profundo, desafiador, inspirador e certamente vale ser lido e relido. Maior proveito será obtido se a leitura for feita lentamente, de forma reflexiva e na companhia de parceiro de jornada. Ao fazer isso, você estará alimentando a sua imaginação cristã e dando os primeiros passos no modelo proposto. E quando você se perguntar: “e se eu fizer…”, saberá por experiência própria que o livro atingiu seus objetivos.
Raphael A. Haeuser
Coordenador do Didaquê
TeachBeyond Brasil
Texto publicado originalmente na Revista Unus Mundus, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, mar. 2023. Link para o texto https://unusmundus.academiaabc2.org.br/e-se-a-fe-crista-tivesse-algo-a-ver-com-a-pedagogia/ Acesso em 10.05.2023
[1] David I. Smith, Pedagogia Cristã: como praticar a fé em sala de aula, 2022, p. 15 (grifo do autor).
[2] Smith é autor ou coautor de vários livros sobre a relação da fé cristã com a educação. Os que foram revisitados para escrita deste livro são The Bible and the Task of Teaching (A Bíblia e a tarefa de ensinar), Spirituality, Social Justice and Language Learning (Espiritualidade, justiça social e aprendizado de idiomas), Teaching and Christian Practices: reshaping faith and learning (Pedagogia e práticas cristãs: remodelando fé e aprendizagem), e Teaching and the Christian Imagination (Pedagogia e a imaginação cristã).
[3] Smith, 2022, p. 177.
[4] No seu livro The Bible and the Task of Teaching, Smith argumenta que a ligação entre fé e educação é multifacetada, como uma corda com muitos fios. Narrativas, metáforas, princípios e valores cristãos são alguns desses “fios” que contribuem para a realização dessa conexão.
[5] Smith, 2022, p. 95.
[6] Smith, 2022, p. 103.
[7] Smith, 2022, p. 128.
[8] Smith, 2022, p. 177.
[9] David I. Smith ainda é pouco conhecido no Brasil. Além do livro em questão, o único texto encontrado do autor em português é a tradução de um artigo entitulado “O que ser cristão tem a ver com a forma como ensinamos”.
[10] No capítulo 8 do livro The Gift of the Stranger, Smith propõe que “procedimentos” são atividades pedagógicas isoladas, as quais, em conjunto, formam um “design”, que, por sua vez, é motivado por uma “abordagem”, ou seja, as crenças e compromissos fundamentais que orientam nossas escolhas.
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