Criando Filhos na Era das Telas

Qualquer um que se proponha a escrever uma reflexão sobre telas, ou algum outro tema referente à tecnologia, precisa ter em mente que seu texto poderá ter um prazo de validade curto. A tecnologia muda numa velocidade praticamente impossível de ser acompanhada. A todo instante, novos itens tecnológicos como smartphones, gadgets, aplicativos viciantes, são lançados no mercado. E agora a febre do momento, as chamadas “IAs”(inteligências artificiais) prometem facilitar nosso trabalho, nossa rotina, nossa saúde e nos ajudar a ter uma vida mais cômoda, produtiva e com menos perda de tempo. Isso tudo até a próxima onda tecnológica surgir e as grandes Big Techs nos apresentarem suas novidades.

Dito isto, neste breve texto proponho apenas uma reflexão sobre a criação de filhos numa era de telas. Como pais cristãos deveriam se relacionar com as telas na criação de seus filhos? O ideal seria um completo retorno ao analógico, ou deveríamos simplesmente deixar o fluxo seguir?

Um chamado aos pais cristãos

Como cristão somos chamados a viver a partir de uma verdade eterna, atemporal e imutável (Sl 119:89, Is 40:8, 1Pe 1:25). Somos chamados a trabalhar para manter uma fé que avance de uma geração a outra, até que chegue o dia em que todos cheguemos à plena estatura de Cristo (Ef 4:13), e aqui especificamente os pais estão incluídos, como uma força formativa que mantém a fé viva de uma a outra geração. Vivemos em uma época desafiadora, mas qual época não foi desafiadora para os cristãos que sempre viveram na contramão do espírito da época?

Cada cristão de cada geração e local é chamado a aplicar as verdades eternas à sua própria realidade, desafios e contextos. Como pais, nosso desafio é ainda maior: somos incumbidos de aplicar o Evangelho às nossas próprias vidas, bem como aqueles que estão sob nossa responsabilidade direta: os nossos filhos. Somos comissionados a criar filhos na “disciplina e na admoestação do Senhor” (Ef 6:4), ou como escreveu Eugene Peterson em sua paráfrase da Bíblia chamada A Mensagem, “Tratem de segurá-los pela mão para guiá-los no caminho do Senhor”. Numa era de telas, fazer isso é uma missão que necessita de intencionalidade, coragem, disposição e graça de Deus.

Ao longo da história, os cristãos sempre foram envolvidos ativamente na criação e educação de seus filhos. Por exemplo, um trecho da Carta a Diogneto, um documento datado do primeiro século onde um cristão está explicando a um “pagão” o que é a fé cristã, afirma que os cristãos “casam-se […] geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos!”[1] Pode parecer simplista, mas creio que a aplicação é mais ampla do que meramente o abandono físico, pois nos leva a refletir também sobre um não abandono intelectual, espiritual e afetivo, e a título de nossa reflexão, um não abandono às telas como substituto a nossa presença intencional.

Em seu importante livro Sabedoria Digital para a Família, Andy Crouch reflete que no contexto de uma família que lida de forma saudável com a tecnologia, existe um chamado para “juntos, nos tornamos pessoas corajosas e sábias”[2]. Na verdade, tornar-se sábio e corajoso é o verdadeiro sentido da família.” Para isso, Crouch nos dá 3 pontos importantes que todo pai deveria observar na criação de seus filhos que o ajudarão a desenvolver “sabedoria e coragem”, seriam eles:

  1. Escolher o caráter: modelar nos filhos de forma prática a coragem e a sabedoria para viverem no mundo.
  2. Moldar o espaço: com aquilo que nos ajudará a formar o caráter dos filhos, além do desenvolvimento da criatividade.
  3. Estruturar o tempo: que tem a ver com organizar o ritmo da família de forma intencional, de modo a proporcionar oportunidades de conhecer uns aos outros, a Deus e sua criação. [3]

Sejamos sinceros, é muito mais fácil (para nós, os pais) entregar uma tela aos nossos filhos (ou seria entregar nossos filhos a uma tela?) depois de um dia cheio e cansado do que buscar as últimas gotas de força do dia e empregá-las em alguma atividade intencional com a família. O grande problema disso não é tanto a tela em si, mas o uso não saudável da mesma, uma vez que somos chamados pela Palavra de Deus a “remir o tempo” (Ef 5:15 ARA), ou seja, usá-lo com sabedoria, porque ele é uma dádiva de Deus.

Em seu provocante livro A Fábrica de Cretinos Digitais, Michel Desmurget nos alerta para o fato que o grande vilão da história não são as telas em si, mas o seu uso recreativo.[4] O autor ainda coloca por terra a falácia dos chamados “nativos digitais”, mostrando através de substanciosos dados e pesquisas que isso é mais uma “lenda urbana” do que um fato em si. Mas se as telas não são os vilões e sim seu uso recreativo que é disfuncional, qual seria o uso adequado das mesmas e como as famílias poderiam (deveriam?) se relacionar com elas.

Um uso redentivo e sábio das telas

Existe um chamado no Novo Testamento a examinarmos tudo e retermos o que é bom (1Ts 5:21), e a fazermos tudo para glória de Deus (1Co 10:31). Creio fortemente que podemos e devemos utilizar as telas de forma sábia a favor da educação de nossos filhos. Por mais que possamos ter um “saudosismo analógico”, o mundo é cada vez mais digital. Simplesmente demonizar cada aspecto dele, observando os seus perigos (ainda que reais) e malefícios, provavelmente não é a melhor forma de um cristão se relacionar com as telas, no que tange à criação de filhos sábios e corajosos, que andam no temor e admoestação do Senhor.

Para esse último ponto de nossa reflexão, recorro à doutora Maryanne Wolf, importante defensora da prática de leitura com crianças. Em seu livro O Cérebro no Mundo Digital, Wolf discorre sobre os desafios do mundo digital para o “cérebro leitor”[5]. O constante hábito recreacional e de leitura superficial, além da constante busca pelo prazer imediato naquilo que nos prende mais facilmente à atenção, faz com que nossos cérebros se tornem incapazes de ler e pensar de forma profunda sobre praticamente qualquer coisa que lemos em uma tela.

Mas nem tudo no livro existe para expor os já conhecidos problemas das telas. Há um capítulo inteiro dedicado àquilo que ela denomina como “um cérebro duplamente letrado”, ou seja, um cérebro capaz de se beneficiar das habilidades e possibilidades proporcionadas pela leitura tanto em material impresso quanto em telas. Wolf defende que devemos ensinar às nossas crianças as habilidades de leitura profunda utilizando material impresso e aos poucos introduzindo essas mesmas habilidades através da mediação de um adulto utilizando telas. Nas palavras da própria autora:

Incentivar explicitamente as habilidades mais iniciais da leitura profunda nos jovens leitores seria um antídoto às tentações incessantes que rondam a cultura digital, como ler por cima e passar rapidamente para a próxima coisa interessante; ser passivo e conceber a leitura como mais um jogo que diverte e acaba; evitar descobrir os próprios pensamentos. […] ler pelo sentido, e não pela velocidade; a evitar o estilo bem conhecido que consiste em ler por cima, caçar palavras e ziguezaguear usado por muitos leitores adultos; ao monitoramento regular de sua compreensão enquanto leem (checando a sequência e as “pistas” do enredo e varrendo a memória em busca de detalhes); e às estratégias de aprendizado, para garantir que eles apliquem ao conteúdo on-line as mesmas habilidades analógicas e sensoriais que aprenderam para os textos impressos.[6]

Pense em como nossos filhos poderiam se beneficiar dessa habilidade de leitura profunda em telas. Hoje, através de aplicativos de leitura, temos à disposição uma biblioteca inteira na palma de nossas mãos. E não somente isso, a própria proposta de educação à distância, tão presente em nossa cultura atual, serve de possibilidade para a democratização do saber. Contudo, sem um cérebro duplamente letrado, nossos filhos ficarão apenas no raso e tirarão pouco benefício daquilo que as telas podem oferecer, principalmente se continuarmos a entregá-los a entretenimento de baixíssima interação.

Somos o povo do Livro, e ele deve ser lido e meditado, não importando a mídia na qual é utilizado. Que Deus nos dê sabedoria e discernimento para educar nossos filhos a serem pessoas sábias não só no mundo físico, mas também no digital, e a saberem utilizar as ferramentas de sua época para glória de Deus!

Wesley Carvalho

Graduado em Psicopedagogia, com especialização em Educação Especial, Análise do Comportamento Aplicada ao Autismo, e Psicopedagogia baseada em ABA. Com mais de 10 anos de experiência na área clínica e institucional, ele atende crianças e adolescentes autistas e atua como orientador em inclusão e educação especial. Atualmente, Wesley está em formação no Programa de Enriquecimento Instrumental do Feuerstein Institute. Ele é casado com Raiane e pai de Noah, Zack e Lucy.


[1] Apologistas, Padres. Patrística – Padres Apologistas – Vol. 2: Carta a Diogneto | Aristides de Atenas | Taciano, o Sírio | Atenágoras de Atenas | Teófilo de Antioquia | Hermias, o filósofo (Portuguese Edition) (p. 17). Paulus Editora. Edição do Kindle

[2] Andy Crouch, Sabedoria digital para a família; São Paulo, Pilgrim, 2021, p. 13.

[3] Ibid., p. 33

[4] Michel Desmurget; A fábrica de cretinos digitais, Os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo Vestígio, 2021.

[5] Maryanne Wolf, O cérebro no mundo digital, os desafios da leitura na nossa era. São Paulo, Editora Contexto, 2019.

[6] Ibid., p. 202, 205 (grifo próprio).

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