Fé Cristã & Direitos Humanos

Em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) chamou a atenção do mundo ao apresentar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), sob a presidência de Eleanor Roosevelt, uma defensora desses direitos.[1]

No seu preâmbulo, o documento aponta que sua escrita foi motivada pelo caos e a barbárie que o antecedeu, fazendo alusão aos horrores da Segunda Guerra Mundial e do holocausto dos judeus.[2]

E no Artigo 1º, a Declaração cita claramente os direitos inerentes a todos os seres humanos: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.” Algo que parece óbvio para nós no século XXI, mas o que muitos não sabem é que essa afirmação foi revolucionária e fruto de muitos séculos de debates e construções jurídicas.

Outro fato desconhecido de muitos é que a fé cristão teve muita influência na edificação da ideia global da igualdade de direitos e dignidade entre todos os seres humanos e na articulação dos preceitos e direitos garantidos pela DUDH. Infelizmente, esta consideração é contraditória com a posição atual de alguns cristãos que se declaram contra os Direitos Humanos. Cremos que o fazem, primeiramente, por desconhecer o conteúdo da DUDH e, secundariamente, por desconhecer a própria história da humanidade. Para compreendermos melhor essas verdades, precisamos revisitar a história.

Na Antiguidade

Nos povos primitivos, a vida social era estabelecida a partir de seu pensamento mitológico. A religião é a mais antiga das instituições humanas, anterior até mesmo ao Estado, mesmo na sua forma primitiva. A religião, em suas diferentes vertentes, é uma forma de explicar a vida, seu sentido, sua origem, seus dilemas e suas contradições.

Com o tempo, a religião se tornou legitimadora de poderes e foi se institucionalizando. Dizia-se que o rei era rei porque os deuses o escolheram, ou porque ele mesmo era um deus. Em muitas sociedades, a violência e a desigualdade foram legitimadas pela religião. É o caso da sociedade de castas da Índia, onde o hinduísmo legitimava a exclusão e a segregação, usando a religião para justificar os motivos do sofrimento dos pobres, pois estariam pagando o “carma” da vida passada. Semelhantes fenômenos ocorreram na Mesopotâmia, no Egito, na China e entre os Incas.

A humilhação e opressão das mulheres também era justificada em muitos povos, pois em sua tradição elas teriam sido criadas para servir aos homens. Em outras culturas, deuses exigiam o sacrifício de crianças em seus altares, para garantir a prosperidade e a colheita farta. A escravização, o extermínio e a opressão de povos estrangeiros eram geralmente justificados pelo fato de não servirem ao mesmo deus.

Percebe-se, então, que o mundo antigo não era afeiçoado às ideias que atualmente vigoram nos Direitos Humanos, e que a maioria das religiões contribuiu para essa situação. A exceção foi um pequeno ramo religioso, que mais tarde iria crescer e ganhar proeminência, chamado judaísmo. Esta religião abraâmica, cuja história é relatada na Bíblia, por muito tempo foi uma fé exclusiva do povo israelita. Os israelitas eram um pequeno povo, comprimido entre vários grandes impérios antigos. Seus limites faziam fronteiras com egípcios, medos, persas, babilônios, etc.

Esse pequeno povo cultivava uma tradição religiosa bastante diferente das nações à sua volta. Por exemplo, o seu Deus não poderia ser representado por uma estátua ou imagem e em sua cosmologia, os seres humanos não haviam sido criados como “escravos” ou “servos” dos deuses. Na tradição dos hebreus, Deus fez o mundo e tudo o que nele há para ser um Éden (jardim de delícias) para sua criação mais importante: os seres humanos.

O sociólogo e teólogo Peter Berger afirma que as raízes mais antigas para os Direitos Humanos vem dessa tradição bíblica. Ele afirma que “a mais profunda dessas raízes é a visão bíblica do homem como criado à imagem e semelhança de Deus, como um agente moral com inteligência e livre-arbítrio e, portanto, dotado de uma dignidade ‘inalienável’. Essa reivindicação moral — de que o indivíduo tem um valor e uma dignidade irredutíveis anterior ao seu status ‘público’ (como cidadão, ou escravo, ou servo contratado, ou liberto, ou membro da aristocracia) — é o fundamento mais sólido possível para qualquer esquema de ‘direitos humanos’ que busca proteger os seres humanos do poder estatal arbitrário (e muitas vezes brutal).”[3]

Perceba que Berger aponta que o Estado é uma instituição que precisa (muitas vezes) ser contida. Essa necessidade surge porque, apesar de ter sido criado pelos humanos para resolver problemas coletivos, o Estado, por vezes, é tomado por indivíduos ou grupos que dele se valem para uma dominação opressora, buscando apenas saciar seus interesses pessoais ou de seu grupo, em detrimento de toda sociedade.

O Cristianismo

No século I, durante o domínio de mais um império despótico e opressor, surge uma pequeníssima força religiosa que, com o passar do tempo, assumiria proporções grandiosas no mundo — o cristianismo.

O cristianismo é o herdeiro da tradição judaica, acrescentando as concepções, valores e ensinamentos de Jesus Cristo aos seus ensinamentos originais. Se olharmos apenas para Jesus e sua pregação, já temos bases sólidas para edificação de Direitos Humanos. Por exemplo, Jesus foi contra várias tradições da sua época ao se comunicar diretamente com mulheres, acolher crianças, opor-se à pena de morte para uma mulher adúltera, pregar que todos precisam igualmente do arrependimento e tratar ricos e pobres da mesma forma (sendo mais exigente com os ricos). Além disso, Jesus não fazia acepção cultural ou nacional entre as pessoas, rompendo as barreiras e limites do território judeu em seu ministério, curando e pregando em cidades romanas, como Decápolis, por exemplo.

A ideia de um Estado laico não é uma invenção francesa, e sim de Jesus Cristo. Valeria um estudo específico sobre a proposta de separação entre Estado e Religião contida na expressão de Cristo: “Deem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.” (Mt 22:21)

Ainda na sua primeira geração, o cristianismo assumiu posições de uma religião global, por agregar os gregos (referindo-se aos povos do vasto Império Romano, que falavam a língua grega) e lançar missões que se propuseram a chegar “até os confins da terra” (At 1:8).

Apesar de o valor social e cultural das ideias cristãs trazerem um certo alvoroço político natural, por manifestarem um valor humano libertador, o domínio ou o poder político nunca foi objetivo de Jesus e de seus apóstolos.

Inclusive, quando foi questionado sobre quando restauraria o reino a Israel, Jesus afirmou que não lhes competia a compreensão desta esfera e nem a busca deste fim, pois estavam sendo enviados apenas a anunciar a boa notícia a todos os povos pelo poder do Espírito Santo. Assim, o Reino de Cristo não se manifesta como algo político, mas sim espiritual, pelo menos na presente era.

Além das falas de Jesus, as cartas do Apóstolo Paulo trazem algumas das mais fortes expressões do ideal de igualdade e dignidade humana, como “Não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus. Se vocês são de Cristo, são descendência de Abraão e herdeiros segundo a promessa.” (Gl 3:28–29)

Esse texto traz consigo fortes implicações:

  1. Ao colocar judeus e gregos na mesma posição, Paulo está rompendo barreiras étnicas, culturais e sociais, que formavam fronteiras invisíveis do racismo e do etnocentrismo que sempre separaram os povos.
  2. Ao pôr homens e mulheres, lado a lado, Paulo está rompendo com a cultura machista de povos do oriente que centravam a vida espiritual e social no homem.
  3. Ao definir que escravos e livres são iguais diante de Deus, herdeiros da mesma promessa, Paulo estava condenando todo tipo de degradação humana que os feitores pudessem atentar contra seus escravos. Na verdade, “escravo” era um título humano e passageiro, pois um dia, diante de Deus, todos serão livres.

Naquela época, tais palavras foram revolucionárias e mal vistas por muitos. Mas Paulo não se importava se iria escandalizar alguém, pois em uma das suas correspondências com Filemon, que era um fazendeiro e possuía escravos. Filemon era cristão e, em um certo momento, um de seus escravos, chamado Onésimo, fugiu. De alguma forma, esse escravo foi parar na mesma prisão em que Paulo ficou preso. E lá, ao ouvir a mensagem de Paulo, Onésimo se converteu ao cristianismo e passou a ajudar Paulo em sua missão. Então Paulo enviou uma correspondência a Filemon, falando de que forma um cristão deveria tratar seu escravo. As palavras são lindas e libertadoras:

“Talvez ele tenha sido separado de você por algum tempo, para que você o tivesse de volta para sempre, não mais como escravo, mas, muito além de escravo, como irmão amado. Ele é para mim um irmão muito amado, mas para você ainda mais, tanto como homem quanto como irmão no Senhor. Assim, se você me considera um companheiro, receba-o como se estivesse recebendo a mim” (Fm 15–17)

Perceba que ele ressalta seu valor como “irmão” e como “pessoa”. A ideia de irmandade, presente no pensamento cristão, é elo e fundamento dos Direitos Humanos.

Para o professor e pesquisador Jean-François Collange, da Universidade de Strasbourg, há um traço de união indissociável entre Cristianismo e Direitos Humanos. Na sua visão, isso faz com que “o valor do homem diante de Deus não está nem na cor de sua pele, nem no seu sexo, nem no seu estatuto social, nem muito menos na sua riqueza, mas no fato de que em Cristo, ele é aceito como filho de um mesmo Deus.” [4] Ou seja, reconhecer-se como filho de um mesmo Pai conduz a uma fraternidade autêntica, base da DUDH.

Outro aspecto da teologia de Paulo é a visão do ser humano como “templo do Espírito Santo”. Tal afirmação é rica em consequências no que se refere aos Direitos Humanos, pois ser templo significa ser moradia do próprio Deus. Seria digno que o templo de Deus fosse torturado, morresse de fome, ficasse desabrigado ou fosse escarnecido? Dessa forma, a cosmovisão cristã não permite aos seus adeptos nenhuma violação dos direitos da pessoa humana, pois seria incoerente com a proclamação do ser humano como casa de Deus.

Precisaria de muitas linhas para listar a contribuição dos pais da Igreja, especialmente de Agostinho, dos Reformadores e de muitos outros líderes cristãos que batalharam pela dignidade humana, como Martin Luther King, que fizeram isso sem abdicar da espiritualidade e esperança cristãs.

Portanto, a Igreja de Jesus Cristo tem o dever de acudir, socorrer e acolher a todos, sem distinção, amando e protegendo. Ela tem a função moral de ensinar os mandamentos da santidade e do amor ao próximo, propagando assim, mesmo que não queira usar esse título, valores dos Direitos Humanos. Além disso, ela é beneficiada por esses direitos, que incluem o direito à liberdade religiosa, crença e expressão, o que nos garante a liberdade de pregar o evangelho por todo o mundo.



Dionísio Hatzenberger

O professor Dionísio é Graduado em História, Especialista em Filosofia e Mestre em Educação (UERGS). Estudou teologia na Word of Life Biblical School Brasil. Atua como Coordenador da pós-graduação em Direitos Humanos da FASEC e como pastor evangélico na Igreja Evangélica Encontros de Fé em Novo Hamburgo/RS.

[1] https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em 05/12/2023.

[2] O preâmbulo da DUDH afirma: “O desconhecimento e o desprezo aos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que chocaram a humanidade e o surgimento de um mundo no qual seres humanos possam desfrutar de liberdade de expressão e crença, e sejam livres do medo e da miséria têm sido citados como os maiores desejos das pessoas comuns.”

[3] BERGER, Peter Are Human Rights Universal? Commentary 64, no. 3 (September 1977): 60–63.

[4] http://www.dhnet.org.br/direitos/codetica/textos/eticaedhlegadotradicoes.html. Acesso em 02/12/2023.

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