O Professor e a Jornada do Herói 

O professor que nunca viu filmes de drama sobre educação e, principalmente, sobre educação em contextos perigosos, que atire a primeira pedra[1]. São excelentes filmes, de fato, que juntamente com propagandas, comerciais e homenagens do Dia dos Professores ajudam a formar o imaginário popular sobre o educador como uma espécie de herói, muitas vezes, o único herói que aquela criança ou adolescente terá na ausência de outras figuras.

Nesse imaginário, ele é visto como aquele que ensina e tem o potencial de abrir as portas da imaginação, trazendo esperança, transformação e amor para os seus alunos. Ele se reinventa a cada nova temporada e se adapta às diferentes necessidades dos estudantes. É uma figura de respeito, responsabilidade e persistência, tanto frente à direção da escola quanto aos responsáveis dos alunos. Ele desafia os ambientes desafiadores e coleciona histórias de adultos que foram inspirados pelo seu trabalho e hoje estão trilhando novos caminhos. Ele é o herói virtuoso que passa por diversas dificuldades, mas que supera todas elas à medida que também aprende, sendo lapidado em caráter e habilidades. Ao final de cada pequena jornada na vida dos alunos, seu esforço e virtude garantem o bom resultado.

A reflexão deste texto se propõe a mostrar que a associação da figura do professor à figura do herói tem limites e que deve ser constantemente balanceada pela perspectiva cristã do herói. Emprestando o arco clássico da jornada do herói dos grandes mitos, o professor-prestes-a-ser, ou mesmo aquele que já carrega a profissão, é frequentemente tentado a se ver como o herói daquela comunidade [2] mesmo que os sacrifícios custem sua saúde física e mental e que o processo seja capaz de sugar a própria realização de ser professor e impactar vidas, como podemos ver em diferentes contextos educacionais brasileiros.

Não é segredo para os que são da área que o número de colegas diagnosticados com a Síndrome do Burnout cresce a cada ano. Quadros emocionais relacionados majoritariamente com profissionais da saúde também já são encontrados em profissionais da educação [3], como a fadiga por compaixão, conceituada como “uma síndrome que causa exaustão física e emocional em decorrência do custo empático de lidar com o sofrimento alheio” [4]. Outros dados também enfatizam que a desistência de professores da educação básica no Brasil se torna preocupante [5], inclusive entre os profissionais que atuam há pouco tempo na área, apontando para um prognóstico desanimador de “apagão” de professores na próxima década [6]. Ainda na graduação, a desistência dos estudantes de pedagogia e licenciatura é muito alta (58%), com números percentuais correspondentes aos cursos com maior número de desistência na graduação, tais como física e filosofia [7].

Olhando de uma forma mais cuidadosa para a Síndrome do Burnout [8], mostram como os anos pós-pandemia aumentaram as demandas emocionais e exigiram maiores habilidades tecnológicas dos professores, aumentando também as cargas de trabalho e os níveis de estresse e ansiedade causados por este novo cenário. Outro ponto importante deste mesmo estudo mostra o Burnout em três dimensões: exaustão emocional, eficácia reduzida e despersonalização. A primeira está relacionada à sobrecarga de trabalho, trazendo sensação de desgaste, cansaço, fadiga e baixa energia. A eficácia reduzida está relacionada à dúvida que este profissional tem sobre suas capacidades e sobre seus resultados enquanto professor. Essa visão negativa sobre suas habilidades influencia na execução das tarefas e acaba trazendo baixa produtividade. A terceira dimensão, despersonalização, mostra uma visão indiferente quanto às pessoas ao seu redor; é uma reação impessoal ao trabalho que executa.

Todos esses três componentes podem ser agravados em virtude de uma imagem mal posicionada sobre o papel do professor, ou em outras palavras, a forma como o próprio professor vê e entende a sua vocação. Em contextos onde o trabalho vem carregado de funções extras, o professor pode muito bem chamar mais responsabilidades para si por achar que consegue dar conta ou pelo senso de dever para com aquela comunidade. Em situações onde problemas sócio- estruturais são profundos, o profissional da educação pode ser levado a achar que aquilo que está fazendo, na verdade, não faz diferença alguma na vida dos seus alunos, se cobrando com uma imagem de herói-salvador à vista. Com uma boa motivação no coração, o professor pode ser tentado a resolver muitos problemas na escola, na sua classe e na vida de seus alunos, o que, em um contexto comum de professores brasileiros, são inúmeros. Uma exaustão provocada pela insistência contínua e desmedida, hora ou outra, conduz à indiferença quanto a todos.

Essa última característica do burnout é um grande apelo em relação ao ser professor: aquele que lida com e investe em muitas pessoas acaba não sendo visto como uma pessoa, com tudo o que isso pede: processos, pausas, reflexões e limites. É nessa medida que este texto propõe que a imagem do professor como herói deve ser mediada pela perspectiva bíblica, tanto da educação como do educador [9].

Em termos bíblicos, entendemos que a educação é um meio pelo qual conteúdos, hábitos, princípios e valores podem ser aprendidos, espelhando e aprofundando a compreensão do ser humano sobre si mesmo em relação a Deus, sobre o mundo que Deus criou e sobre o próprio Criador. É necessário lembrar que todos precisamos ser transformados em diferentes áreas, e que o processo educacional pode contribuir em muito para aperfeiçoamento de caráter e competências — mas somente Cristo pode alcançar as mais profundas camadas do ser humano.

Algo semelhante se dá em relação ao professor: quando o professor cristão se esquece de que somente o Deus-homem foi capaz de carregar os pecados da humanidade, sofrer e vencer a morte (Isaías 53:3-12), ele pode ser tentado a salvar outros com suas próprias forças. Ele pode julgar que, no final das contas, essa é sua verdadeira vocação, e só encontrar frustração e desgastes advindos disso. Jesus, o mestre, é a fonte de renovo contínuo para o professor que precisa (e pode) descansar.

A visão bíblica do herói aponta para Cristo. Tal como Moisés levantou a serpente num deserto cheio de perigos (Nu 21:8–9) e pela visão da serpente que apontava para Cristo e salvava as pessoas (Jo 3:14–15), o professor que aponta para Cristo salva a si mesmo e dá oportunidade para os outros também conhecerem o poder salvador de Jesus.

Entre tantas cobranças relacionadas ao ofício do professor, que não seja uma imagem injusta de herói-salvador aquela que mais irá nos prejudicar, estabelecendo padrões demasiadamente altos para o sucesso de um professor. Que seja a imagem do Mestre e seus doze discípulos, que seja a figura do pastor que cuida das ovelhas, que seja a figura do servo obediente que traga paz e alívio para os professores neste dia tão especial.

Joyce Melo

Professora de Sociologia e Filosofia em pausa programada. Membro do TeachBeyond Brasil na área de Comunicações.


[1]Podemos citar O Sorriso de Monalisa; Matilda, Escritores da Liberdade, Entre Muros, Sociedade dos Poetas Mortos e mesmo o contraexemplo A onda, entre tantos outros.

[2]Um paradoxo a ser estudado é a coexistência da imagem do professor como herói e a desvalorização de seu ofício enquanto pessoa que trabalha. Para mais informações sobre isso, ver texto de Raphael Haeuser (O Valor de um professor valorizado): https://teachbeyond.com.br/2022/10/o-valor-de-um-professor-valorizado/.

[3]AUGUSTO, Arminda. Fadiga por compaixão já afeta a saúde mental de professores no Brasil. A Tribuna. 23 de junho de 2024. Disponível em:https://www.atribuna.com.br/cidades/fadiga-por-compaix-o-ja-afeta-saude-mental-de-professores-no-brasil-1.424012. Acesso: 07/10/2024. 09:00hrs. 

[4]LAGO, Kennyston; CODO, Wanderley. Fadiga por compaixão: evidências de validade fatorial e consistência interna do ProQol-BR. Estudos de Psicologia, 18(2), abril-junho/2013, p. 213-221. 

[5]O instituto Semesp divulgou uma pesquisa neste ano indicando que 8 em cada 10 professores já pensaram em desistir da profissão no Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2024-05/oito-em-cada-dez-professores-ja-p ensaram-em-desistir-da-carreira. Acesso: 05/10/2024. 14:00 hrs. 

[6]O apagão de professores no Brasil, por Carta Capital, 30/01/2024. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-apagao-de-professores-no-brasil/ . Acesso: 07/10/2024. 08:00hrs. 

[7]Censo da Educação Superior 2022, INEP. Disponível em: https://www.gov.br/inep/pt-br/assuntos/noticias/institucional/dados-revelam-perfil-dos-professores-brasileiros. Acesso: 07/10/2024. 08:30hrs. 

[8]BRANDÃO, L et. al. Síndrome de Burnout em professores brasileiros: uma revisão de escopo. Revista Ioles, Boletim de Conjuntura. Ano VI, vol. 18, n. 54, Boa Vista, 2024, p. 1-27. 

[9]Para reflexões mais aprofundadas sobre o papel do sábio em Israel, ver MIGUEL, Igor. A escola do Messias: fundamentos bíblico-canônicos para a vida intelectual cristã. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021. 

Posts recentes:

Posts relacionados:

Eventos:

0 respostas

Deixe uma resposta

Want to join the discussion?
Feel free to contribute!

Deixe um comentário

Didaquê


Fique em contato com a gente

Escritório Nacional: Av. Júlio de Castilhos, 1401 Sala 501 — 95010-003 — Caxias do Sul/RS

um ministério:

TeachBeyond Brasil