Do Consumo à Dádiva: redescobrindo a sacralidade do comer
Viemos em um tempo em que o ato de comer se tornou quase automático — embalado, apressado e muitas vezes sem consciência. Escolhemos alimentos como quem escolhe produtos: pelo preço, pela praticidade ou pelo status da marca. Comemos para funcionar, não mais para celebrar. Mas e se cada refeição fosse, na verdade, um lembrete do cuidado e da generosidade do Criador? E se o ato de comer fosse mais do que nutrir o corpo?
Desde a criação, a Bíblia revela um Deus que provê alimento às suas criaturas não apenas como uma forma de sustento, mas como presente e sinal de cuidado (Gn 1:29–30; 2:9). O mundo criado por Deus produz alimento suficiente e com extraordinária diversidade e, a cada etapa, do plantio e da colheita ao transporte e preparo, manifesta a provisão de Deus, que concede recursos, condições e sabedoria para que pessoas cultivem, produzam e transformem os alimentos que chegam à nossa mesa.
O Criador poderia ter criado um único fruto, sem graça e de sabor uniforme, para nutrir o corpo humano, mas decidiu oferecer diversidade e beleza: cores, aromas, texturas e nutrientes distintos em cada alimento.
No entanto, a humanidade distorceu esse presente, repartindo-o de forma injusta e tratando a comida mais como mercadoria do que como dádiva, impedindo que essa abundância chegue a todos de forma adequada e igualitária. Não é raro que produtos ultraprocessados, geralmente mais baratos, duráveis e de distribuição mais ampla, estejam mais disponíveis do que alimentos frescos e nutritivos. Além disso, ultraprocessados favorecem o desenvolvimento de doenças crônicas, prejudicam o meio ambiente e contribuem para a perda da cultura alimentar tradicional, ao substituir receitas regionais por produtos sem identidade local.[1] Por isso, ter condições de escolher o que se come e de preparar os alimentos de forma adequada é um privilégio que muitas vezes não é devidamente reconhecido e aproveitado.
Uma visão cristã de alimentação reconhece que a comida é mais do que apenas sustento biológico, pois carrega significado, influencia a sociedade e revela quem somos. Peter Bringe, em “Filosofia Cristã da Alimentação”, observa que “o que escolhemos comer afeta nossa vida, e nossa vida afeta a comida que escolhemos”.[2] Para ele, a comida é parte da cultura e da visão de mundo: reflete emoções, história, valores e crenças. Nossas decisões alimentares revelam o que realmente têm valor para nós. “Por exemplo, se alguém acredita que o prazer tem valor último, então comerá a comida que produz o máximo de sabor e prazer sensual. Se alguém acredita que a vida mortal tem valor último, então será dominado pelo cuidado com o corpo, ou perderá a esperança e não se importará com o que come. Ideias têm consequências, e o que as pessoas comem ilustra esse princípio.”[3]
Na sociedade contemporânea, a relação com a comida frequentemente vai a extremos. De um lado, há quem associe “boa alimentação” apenas a dietas restritivas ou ao consumo exclusivo de produtos rotulados como fitness ou orgânicos, reduzindo o alimento a uma ferramenta de controle, esquecendo que ele é um presente de Deus. Por outro lado, muitos negligenciam totalmente a própria alimentação, consumindo alimentos e bebidas industrializadas em excesso, com pouca ou nenhuma ingestão de água. Em ambos os casos, perde-se a compreensão do real papel que a comida deve ter.[4]
O Criador planejou cada planta, definiu os nutrientes de cada alimento e até a forma como reagiriam no preparo, para que pudéssemos experimentar sabores agradáveis e comer com gratidão. Portanto, refletir sobre nossos hábitos alimentares não é algo alheio à nossa fé.
Tish Warren, em Liturgia do Ordinário, enfatiza que cada refeição é um convite à ação de graças. Comer vai além de um ato biológico: é também comunitário, relacional e ético. Quando reduzimos a comida a uma simples mercadoria, perdemos de vista sua dimensão de mordomia e justiça, contribuindo para a perpetuação de sistemas de escassez e exploração que negam a generosidade do Criador. Precisamos reconhecer que dependemos uns dos outros, partilhando recursos e buscando justiça para que todos tenham acesso ao alimento que Deus provê em abundância.[5]
Deus se importa com o que comemos porque, em sua bondade, criou nossos corpos com um propósito eterno e deu tudo o que é necessário para a manutenção da vida. Nossos corpos não são um detalhe irrelevante da existência, mas parte essencial do que significa ser humano: foram criados e amados por Deus e, um dia, serão glorificados na ressurreição. Por isso, podemos escolher viver com gratidão, reconhecendo nossos corpos como dádivas preciosas, cuidando deles com sabedoria e buscando redimir todas as áreas da vida, inclusive a alimentação, ou viver como se fossem irrelevantes e desconectados de quem realmente somos.
Pelo menos uma vez por ano, no Dia Mundial da Alimentação[6], somos lembrados de que comer vai muito além de suprir necessidades físicas: é um ato espiritual, social e ético. Cada refeição revela a generosidade do Criador e expõe nossa responsabilidade diante da criação. Escolher alimentos que nutrem o corpo, respeitam o meio ambiente e promovem justiça é reconhecer que a comida é um presente divino, não uma mercadoria ou simples recurso de consumo.
Diferente do que muitas pessoas pensam, uma alimentação saudável e adequada não é tão complexa e difícil assim. O Guia Alimentar para a População Brasileira traz orientações muito simples e práticas, como:[7]
- Priorizar alimentos in natura ou minimamente processados, com variedade de frutas, verduras, legumes, cereais integrais e leguminosas.
- Usar óleos, gorduras, sal e açúcar apenas em pequenas quantidades para temperar.
- Limitar alimentos processados e evitar ultraprocessados, que substituem alimentos naturais e prejudicam tanto a saúde quanto o meio ambiente.
Ao integrar fé e prática, cuidando do que colocamos no prato, partilhando com quem tem menos e agradecendo pelo que recebemos, honramos a Deus, valorizamos a vida que Ele nos deu e participamos de Sua obra de restauração no mundo.
Greiciélen Machado de Godoy
É nutricionista e graduanda em teologia. Gosta de refletir sobre como a fé se relaciona com todas as áreas da vida.
[1] Ministério da Saúde. Cinco fatos para entender o impacto do consumo de ultraprocessados. Brasília: Ministério da Saúde, 28 abr. 2022. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-brasil/eu-quero-me-alimentar-melhor/noticias/2022/cinco-fatos-para-entender-o-impacto-do-consumo-de-ultraprocessados. Acesso em: 25 set. 2025.
[2] BRINGE, Peter. A Filosofia Cristã da Alimentação. Ed. Monergismo, 2017. p.21.
[3] ibid., pp. 6–7.
[4] ALLISON, Gregg R. Teologia do Corpo: Vivendo como pessoas inteiras em um mundo fraturado. São Paulo: Vida Nova, 2023. p. 184.
[5] WARREN, Tish Harrison. Liturgia do Ordinário. São Paulo: Thomas Nelson Brasil, 2021. pp. 99-116.
[6] No dia 16 de outubro comemora-se o Dia Mundial da Alimentação, criado em 1981 para promover uma reflexão global sobre a importância de uma alimentação saudável, acessível e de qualidade para todos. A iniciativa mobiliza atualmente mais de 150 países e, a cada ano, apresenta um tema específico, sempre pautados na busca por garantir a promoção de alimentos adequados e saudáveis, incentivar práticas agrícolas sustentáveis, preservar o meio ambiente e promover o bem-estar das pessoas e das comunidades, reduzindo desigualdades.
[7] Ministério da Saúde. Guia Alimentar para a População Brasileira. 2. ed., 2014.
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