Como a Reforma Protestante Revolucionou a Educação
Quando o assunto é a influência da Igreja na educação, logo se pensa na Idade Média com sua escolástica, as catedráticas — as escolas abertas junto às catedrais — e as universidades mudando para sempre tanto o mundo quanto a forma como se ensina. Esse mérito jamais poderá ser ignorado, mas o que nem tanto se vê ou se lembra é do papel daqueles que se desligaram do sistema eclesiástico romano. O protestantismo, afinal, contribuiu também para o desenvolvimento da educação?
O ensino até a renascença, ao contrário do que por vezes se pensa, não era focado apenas na catequese dos fiéis, pois continha todo um sistema de educação com base nas Sete Artes Liberais, compiladas no Trivium (gramática, dialética e retórica) e no Quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música), vigorosamente ligado à Igreja Católica. As formas de ensino que se desvinculavam da instituição eram basicamente as de ofícios cotidianos de sistema artesanal (como carpintaria e ferraria) e de subsistência (como agricultura, caça e pesca), onde o conhecimento passado dos mestres aos aprendizes. O problema é que nesse tempo a educação, que permanecia universalizada, ainda não era entendida como sendo uma necessidade para a maioria das pessoas.
Aqui entra o papel de Martin Lutero, reformador protestante. O questionamento levantado pelas suas 95 Teses não afrontou apenas o sistema eclesiástico e a teologia da época, mas iniciou a um movimento que revolucionaria de maneira colossal a sociedade na sua totalidade, e principalmente a educação. O grande estopim dessa revolução foi a tradução da Bíblia do latim, de entendimento exclusivo do clero, para o alemão, falado pelo povo, em 1534.[1] Como que numa concomitância providencial, esse impacto foi potencializado por aquele que é considerado o maior invento do segundo milênio: a prensa de Gutenberg, cuja primeira impressão havia sido justamente uma Bíblia em 1455, muito pouco antes da iniciativa de Lutero.[2] A Bíblia traduzida poderia assim não só ser disponibilizada ao clero, mas ao povo, com um grande volume de cópias rapidamente impressas.
O sucesso da empreitada não foi apenas resultado do acaso de um tradutor e uma prensa se encontrarem, mas fruto de uma nova doutrina que a acompanhava: a teologia protestante declarava que a Igreja Católica não possuía propriedade espiritual sobre a interpretação das Escrituras, de forma que o povo deveria ter, sim, esse acesso e esse direito. Em vias práticas, essa era a tomada popular do direito à educação! O aumento da emancipação das igrejas decorrente da revolução religiosa tocaria outros âmbitos da vida, e faria desta uma revolução não só teológica, mas filosófica, social e até econômica.
Dos ideais específicos de Lutero em relação à educação, pode se dizer que desejava profundamente a universalização do ensino, e não seria exagero dizer que essa foi a primeira voz que se levantou em favor de uma educação gratuita, pública e inclusiva. Isso abarca, por exemplo, a educação feminina: Lutero fomenta e prega a educação para mulheres em todas as cidades, igualando o status dos gêneros na educação. Na educação infantil, o movimento luterano introduziu o foco na ludicidade, o que era bastante anacrônico a um tempo como aquele, onde a criança era basicamente vista como um mini-adulto.[3]
Suas solicitações a respeito da universalização da Bíblia ao Estado alemão desembocariam em vários efeitos quase imediatos: o estado germânico de Gotha fundaria em 1524 (apenas sete anos após a publicação das Teses) a primeira escola pública moderna, e mais tarde Lutero fundaria o plano Escolar da Saxônia, posto em prática em 1528, que se tornaria a inspiração para o sistema estatal de educação da maioria dos estados luteranos depois disso. A escola agora não mais pertenceria à Igreja, mas seria de responsabilidade do Estado e dos pais.[4]
Quando falamos no movimento protestante como um todo, fica claro que as iniciativas não se encerram em Lutero. Genebra também se ergue como um centro histórico para o ensino: em 1554 a Academia de Genebra é fundada por João Calvino, outro líder da Reforma Protestante, mostrando alta preocupação com a solidez não apenas espiritual, mas educacional dos habitantes. Esses movimentos, com todo o movimento geral de Reforma, indo muito além de Lutero e Calvino, não se restringiriam ao continente europeu, e em breve encontrariam casa no Novo Mundo, onde protagonizariam grandes transformações, a exemplo do nosso país (abordamos esse tema no próximo texto).[5]
A influência da Reforma Protestante não se limitou à teologia! A educação moderna deve muito a esse movimento iniciado em 1517, em Wittenberg. Hoje, 31 de outubro, podemos não apenas lembrar de uma reforma religiosa, mas também comemorar um marco transformador de ideias e mentes, com seus pontos negativos, como cabe a qualquer movimento humano, mas também com méritos de valor incalculável. (Saiba também como a Reforma Protestante impactou a educação no Brasil)
Ticiano Castoldi
TeachBeyond Brasil
Ticiano é graduado em História pela UNIVATES e pós-graduado em Ensino em História e Geografia pelo Centro Universitário Barão de Mauá, ministra aulas no Seminário Teológico de Gramado e coordena o Conversando de Boinas, um ministério de produção de conteúdo e educação informal.
[1] SANTOS, João Marcos Leitão. RELIGIÃO E EDUCAÇÃO: Contribuição Protestante à Educação Brasileira 1860-1911. Revista Tópicos Educacionais, 17, 2007, p. 106. Disponível em: https://periodicos.ufpe.br/revistas/topicoseducacionais/article/view/22448.
[2] SANTOS, Adelcio Machado dos. GUTENBERG: A Era da Imprensa. Percepções – Periódico científico de Comunicologia, 1, 05/2012, p. 16. Disponível em: https://periodicos.uniarp.edu.br/index.php/percepcoes/article/view/25.
[3] JARDILINO, José Rubens Lima; LOPES, Leandro e Proença. O PROJETO POLÍTICO E PEDAGÓGICO DA REFORMA PROTESTANTE: Notas sobre Educação e Protestantismo. Revista Humanitae, 1, 01/2021, p. 56. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/revistahumanitae/article/view/15153.
[4] ibid., p. 57.
[5] ibid., p. 56.
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