Educando Para a Cidadania

(série Propósitos da Educação)

Provavelmente a maioria das pessoas veja a educação como uma forma de garantir um lugar ao sol no competitivo mercado de trabalho, mas uma educação verdadeiramente transformadora precisa ir mais longe. Queremos construir um mundo melhor, o que nos leva ao segundo propósito da educação elencado pela constituição brasileira: o exercício da cidadania.[1]

Embora o termo ‘cidadania’ seja de origem latina (derivada da palavra ‘cidade’), o conceito vem do pensamento grego sobre a cidade ou polis. Originalmente, polis se referia a uma cidade fortificada com muros, e depois também passou a se referir à área de plantio e vilas abertas à sua volta. Neste contexto, ‘ser cidadão’ é beneficiar-se dos privilégios de morar na cidade e ‘exercer cidadania’ é participar dos seus processos decisórios.

Com o passar do tempo, o conceito de cidadania cresceu, e hoje se refere ao conjunto de direitos e deveres pertencentes aos cidadãos de um determinado país. No caso mais específico do Brasil, isso significa: educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados.[2]

A palavra ‘cidadania’ é rara nas Escrituras, e mesmo assim elas têm muito a dizer sobre o nosso relacionamento com o poder político e sobre a nossa contribuição para com o bem comum. Não temos como entrar em todos os aspectos, mas queremos destacar alguns elementos básicos:

  1. Apesar de a linguagem de cidadania e democracia ser de origem grega, é na tradição judaico-cristã que encontramos o verdadeiro espírito democrático. Na democracia grega proposta por Clístenes no sexto século antes de Cristo, estima-se que apenas 10–20% dos moradores de uma polis, como Atenas, fossem de fato cidadãos. Crianças (menores de 18 anos), mulheres, escravos e estrangeiros tinham pouquíssimos ou nenhum direito. Já na narrativa bíblica lemos que cada ser humano é criado a imagem de Deus. Deus compartilhou a sua autoridade com todos os homens e mulheres (e não apenas com as elites), delegando-lhes a responsabilidade de governarem o restante da criação com sabedoria e justiça. Educar para a cidadania, neste caso, é ensinar nossos alunos a verem a dignidade inerente do nosso próximo, mesmo se ele for de outra classe social, grupo ético, orientação sexual ou credo religioso. Significa também ensiná-los a respeitarem esse próximo, mesmo quando discordamos das suas escolhas políticas ou de estilo de vida.
  2. A partir do conceito de imagem de Deus, vemos também que as Escrituras têm uma dimensão social a que todos têm uma contribuição a fazer. Somos orientados a fazermos “o bem a todos” e a buscar “a prosperidade da cidade”. Muito disso envolve atitudes simples que beneficiam a todos, como seguir as leis e normas de segurança no trânsito independentemente se somos condutores, pedestres e ciclistas. Outras ações como doar sangue, fazer e arrecadar doações, separar e reciclar o lixo, e cuidar do patrimônio público também são importantes. Pensando assim, educar para cidadania tem a ver com trabalhar esses assuntos em sala de aula, estimular o trabalho voluntário e encorajar a proatividade dos educandos.
  3. Finalmente, é preciso afirmar que as Escrituras têm uma visão um tanto quanto ambígua de governos e governantes. Às vezes, a autoridade política é vista como “serva de Deus” para punir mal; outras vezes, ela é vista como uma “besta”, um monstro que por usurpar o local exclusivo de Deus, gera caos e exploração.[3] Na visão bíblica, embora governos, partidos e ideologias tenham o seu papel, eles estão longe de serem perfeitos. Educar para a cidadania, então, é ensinar as pessoas a evitarem a polarização política e o partidarismo, e a avaliarem criticamente o desempenho das autoridades, celebrando os seus acertos e apontado os seus erros.

Mas de que forma a cidadania pode ser ensinada? Como podemos ajudar nossos alunos a assumir responsabilidade por seus atos e suas vidas de forma que venham a agir de forma mais cidadã? No seu livro Educating for Responsible Action (Educando para a Ação Responsável), o filósofo e teólogo Nicholas Wolterstorff sugere que educar para a responsabilidade envolve pelo menos três componentes. Primeiro, há um aspecto cognitivo, pois não podemos agir responsavelmente sem o conhecimento dos fatos e da realidade. Infelizmente, o saber nem sempre leva ao agir. Segundo, há o desenvolvimento de habilidades, pois é muito difícil agir de forma cidadã e responsável sem saber ler, fazer cálculos, acompanhar as notícias. É preciso que cada um desenvolva a capacidade de discernir qual é o melhor curso de ação em determinada situação. Finalmente, ainda há a questão das tendências e disposições, pois não vamos agir responsavelmente se a menos que tivermos o compromisso e a vontade de fazê-lo.

A falta de conhecimento e capacidade do aluno é bem mais fácil de ser resolvida do que a falta de compromisso. Não temos como obrigar ninguém a se comprometer, e nem devemos manipular ninguém a agir da forma como nós gostaríamos. Contudo, como educadores, podemos promover o exercício da cidadania e da responsabilidade através de três formas básicas:

  • sendo modelos de cidadãos responsáveis. Isso não significa que precisamos ser perfeitos, mas que deve haver uma coerência entre o que falamos e estimulamos e o que nós de fato fazemos.
  • promovendo a reflexão sobre as diversas ações que cabem dentro do assunto cidadania e bem comum, através de projetos, pesquisas, debates e passeios escolares.
  • auxiliando nossos alunos a refletirem sobre as suas próprias atitudes, decisões e prioridades.

Raphael A. Haeuser
Coordenador do Didaquê
TeachBeyond Brasil

[1] Ver o Artigo 205 da Constituição Brasileira.

[2] Ver o Artigo 6 da Constituição Brasileira.

[3] Compare Romanos 13, que tem uma visão mais favorável do Estado, com Apocalipse 13, que tem uma visão bem crítica e desfavorável.

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