A Espiritualidade de uma Vocação Qualquer

Flávia tem 20 e tantos anos, trabalha duro durante o dia e faz faculdade à noite. Ela vive sob constante estresse, correndo atrás do tempo em longas jornadas e dormindo pouco. Ela não consegue participar ativamente da sua comunidade de fé e, mesmo o texto bíblico afirmando que “no Senhor, o trabalho de vocês não será inútil” (1Cor. 15:58), frequentemente ela se pergunta se o restante do que faz tem significado real no mundo. O exemplo é fictício, até exagerado talvez, mas Flávia não está só. Segundo pesquisa do LICC (London Institute for Contemporary Christianity), mais de 50% dos jovens adultos afirmam que o local de trabalho é o contexto onde mais experimentam dificuldades em viverem como discípulos de Cristo. Ao mesmo tempo, apenas um terço deles afirma que suas igrejas os ajudam a lidarem com essas questões.

As igrejas geralmente estão preocupadas com questões tidas como mais “espirituais”, com atividades como ir ao culto de domingo, evangelizar, orar ou desenvolver um “ministério”. Estar envolvido nessas coisas é “obra do Senhor”, mas as chamadas atividades “seculares” – trabalhar, fazer compras ou praticar esportes – não são. Mark Greene, diretor do LICC, capta bem o sentimento de muitos ao afirmar que essa

“dicotomia nos leva a crer que pessoas realmente santas se tornam missionárias, pessoas meio santas se tornam pastores, e pessoas que não são muito próximas de Deus arrumam um emprego”.

Essa postura frequentemente vem do entendimento de que trabalhar é uma maldição imposta pelo episódio da queda narrado em Gênesis 3. Assim, melhor seria dedicar-se exclusivamente ao cumprimento da Grande Comissão de Jesus – vista somente como evangelismo, missões transculturais ou outras atividades religiosas. Dedicar tempo substancial trabalhando na esfera secular seria, na melhor das hipóteses, um mal necessário; e na pior, uma distração. O trabalho só teria valor instrumental, justificando-se por ser o palco para o ministério, uma plataforma de proselitismo, a fonte dos dízimos que financiam as atividades realmente importantes – as religiosas. A relação entre essas atividades é definida por uma linha sólida e horizontal, onde o “ministério” está acima, e mais próximo de Deus, do que o trabalho no âmbito secular. Muitas pessoas tentam navegar esse tempestuoso mar vocacional com um pé em cada canoa. Sentem a tensão, a culpa, e o estresse decorrentes, temem cair na água e se afogar. Vez ou outra acabam por considerar: “Se eu ao menos pudesse parar de trabalhar para me dedicar ao ministério…”

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Porém, uma visão mais adequada à fé bíblica vê o trabalho como algo positivo, pois está vinculado aos propósitos criacionais de Deus e à identidade humana. Deus deixou-nos um mandato cultural de procriar, governar, cuidar e cultivar a criação (Gn 1:28 e 2:15). Temos a tarefa de pegar o mundo natural como ele se apresenta a nós e transformá-lo, não apenas para nosso próprio benefício, mas para benefício do nosso próximo e de toda criação. Isso inclui envolver-se na política, indústria, arte, educação, tecnologia, etc. Até mesmo o desenvolvimento tecnológico e cultural dos descendentes ímpios de Caim – como a agropecuária, música e metalurgia – foi incorporado posteriormente pelo povo de Deus (Gn 4:17-22). É verdade que também participamos dos propósitos redentores de Deus através da Grande Comissão, mas esta nos foi dada como uma medida posterior à entrada do pecado no mundo; ou seja, Deus nos deu o segundo mandato para que de fato cumpríssemos o primeiro.

Além disso, a Grande Comissão envolve “ensinar a obedecer a tudo o que Jesus nos ordenou” e sua primeira ordem foi justamente o mandato cultural. Não estamos num “plano B”, mas cooperamos com Deus pela restauração do “plano A”. Por exemplo, quando o povo de Israel estava exilado na Babilônia, o profeta Jeremias os instruiu a construírem casas e a buscarem o bem-estar geral da sua nova nação. Eles não foram ordenados a “evangelizarem” os babilônios e organizarem sinagogas (Nada errado com essas atividades!), mas a cumprirem o mandato cultural. Trabalhar não é um empecilho à redenção, mas um meio de realizá-la. A “obra do Senhor” abraça tanto a esfera maior do trabalho, quanto a do ministério espiritual dentro dele.

A linha que limita a relação entre trabalho e ministério é pontilhada. Pois quando a igreja está reunida nas suas atividades ‘espirituais’, sua tarefa inclui capacitar todos para a vida fora dos seus portões; mas quando dispersa, deve estar atenta às oportunidades de levar uma luz redentora para a tal esfera secular, de demonstrar amor de formas concretas, de servir e contribuir para o bem da sociedade. Jesus não veio para que Flávia se tornasse mais religiosa, mas para que vivesse uma vida plenamente humana, o que exige o cumprimento simultâneo de ambos os mandatos. Ao cumprir o mandato cultural em qualquer vocação, de maneira responsável, criativa e atraente, estará servindo ao próximo e à comunidade numa demonstração concreta de amor, bem como despertando a curiosidade sobre o porquê de se agir assim, na esperança (e não exigência) de poder oferecer suas razões.



Raphael A. Haeuser
Coordenador do Didaquê
TeachBeyond Brasil

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  1. […] Cada vez mais se fala da relação entre a fé cristã e o trabalho, mesmo assim, no imaginário de muitos cristãos, há uma hierarquia de santidade nas diferentes ocupações. Entendemos o chamado de pastores e missionários, vemos o valor de ser mãe, trabalhando em casa, e dos profissionais humanitários como médicos e professores, mas temos dificuldade em ver empresários, comerciantes e políticos como ocupações que servem a D…. […]

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